segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Cartum: Saldade da Bahia por J.C.


Documentário: Estamira #ficadica

Estamira se auto-define, “vocês é comum, eu não sou comum”. “Só meu formato é comum, vou explicar para vocês tudinho agora, para o mundo inteiro”. “Sou louca, sou doida, sou maluca, sou avoada. Sou as quatro coisas. Mas, porém, consciente, lúcida, e ciente, sentimentalmente” e explica que é um cometa, e que “o cometa é um comandante, um comandante natural”. Esse conjunto de adjetivos e a sua peleja, lembra um personagem da literatura, Dom Quixote de Miguel de Cervantes, ambos surpreendem com a lucidez de sua loucura.
Provoca ao afirmar que os homens estão cegos devido o uso dos “dopantes”, contesta o racionalismo de Descarte “a tua lucidez não te deixa ver” e defende o empirismo, “vocês não aprendem nada na escola, vocês copiam”, pois só se aprende “com as ocorrências”. Assim, se contrapõem a razão e argumenta “eu não sou um robô”.
Consciente ou inconscientemente defende a luta antimanicomial e, após ter vivenciado a dor de sua mãe durante o período que ficou internada em um manicômio, Estamira resiste a se tornar prisioneira, seja dos familiares ou de uma instituição. Contrapõem esse modelo padronizado de homem que deve manter o controle. Usa a metafísica de Descartes para explicar a ignorância da sociedade diante das questões levantadas pela sua louca lucidez, “vocês ainda não viram, cientista nenhum ainda viu”, “tem o eterno, tem o infinito, o absoluto, o além do além”.
No início do filme objetos e animais são retratados através do plano detalhe, que permite aos espectadores através do conjunto de imagens aparentemente desconexas, perceber a inutilidade e o descaso desses objetos.
Na cena seguinte, através da câmera subjetiva, recurso da linguagem audiovisual usado para mostrar a visão do diretor sobre o que está acontecendo, uma porta é aberta, um vulto atravessa a porta, e pode ser visualizado alguns aspectos de um barraco todos no plano detalhe. O crucifixo junto aos detritos, intriga. “Ele não está pendurado, não está cumprindo sua função simbólica, é mais um objeto destituído de utilidade imediata.” (Silva, 2010, p.p 88).
A porta é fechada por um individuo oculto e começa o acompanhamento da caminha desse sujeito pela rua, utilizando características do modo observativo durante essa cena, tentando criar a sensação que o personagem não sabe que está sendo seguido. Ainda que as imagens sejam acompanhadas por uma música instrumental, dando um tom dramático a cena (recurso não utilizado no modo observativo). Ao entrar no ônibus, começa um quebra-cabeça a partir do plano super close-up para a construção de Estamira. A placa “Gramacho, última saída”, sinaliza a falta de alternativas.
O filme possui influência estética Naturalista, a cena que mostra uma mulher morta no lixão como resto, um detrito qualquer, é um exemplo. O diretor ressalta o lado animalesco do homem ao filmar várias passagens com a presença dos urubus, animal que simboliza a morte e a putefração, o fim, aquele que vive de carniça, de dejetos, do que é podre. E a disputa do alimento com aqueles homens no lixão fossem abutres. Estamira atribui esse problema ao fato deles serem “escravo disfarçado de liberto. A Isabel soltou eles, né? E não deu emprego pros escravo. Passam fome, comem qualquer coisa, igual aos animais. Não têm educação”.
Estamira fala em “depósito de restos”, enquanto vemos três urubus que brigam pelo lixo. “Às vezes é só resto. Às vezes é descuido. Resto e descuido.” O seu discurso não se refere unicamente ao aterro, estende-se aqueles homens que sobrevivem do lixo como se eles também fossem “resto e descuido”. E que tivessem a missão de “conservar as coisas, proteger, lavar, limpar e usar mais, o quanto pode”, referindo-se a importância do papel social desempenhado pelos catadores de lixo ao reciclarem e reutilizarem os materiais descartados pela sociedade do consumo inconsciente.
Conceitos como seleção e competição natural de Charles Darwin poderia ter cenas desse documentário para ilustrá-los. Para Estamira os problemas são decorrentes de um ser onipotente, mas incompetente que cega os homens para depois abandoná-lo, como segue o trecho abaixo:
“Do trocadilo, hipócrita, safado. Canalha, indigno, incompetente. Sabe o que é que ele fez? Mentiu pros homens, soduziu os homens, cegou os homens, soduziu os homens, incentivou os homens pra depois jogar eles no abismo... êta... foi isso que ele fez, entendeu, por isso eu tou na carne, quer saber por quê? Pra desmascarar ele com a quadrilha todinha. E derrubo, e derrubo. Quer me desafiar, hem? É ruim, é. Ele é tão poderoso ao contrário, que eu, até depois da carne velhinha desse jeito, feia desse jeito, boba desse jeito, ele quer mais, aí, aí, é mole. Quer me desafiar? É ruim, é... Cê é bobo, rapaz!” (Estamira, Marcos Prado, 2004)
E encontra no marxismo a solução para essa cegueira e para a problemática social.
“Todos os homens têm que ser iguais. Têm que ser comunista. Comunismo é a ‘igualidade’. Não é obrigado todos trabalhar num serviço só. Não é obrigado todos comer uma coisa só. Mas a ‘igualidade’ é a ordenança que deu quem revelou o homem como único condicional. E o homem é o único condicional seja que cor for. Não gosto que ninguém ofende cores e nem formosura. [...] Comunismo superior.” (Estamira, Marcos Prado, 2004)
O filme alterna entre imagens coloridas e em preto e branco. Fazendo uso dessa estética dual para distinguir as temáticas, local e pessoas que agradam (colorido) e desagradam (preto/branco). Sendo doze em preto/branco (com a duração de 41´19”) e dezenove coloridas (com a duração de 1° 13´26”).
Esteticamente Marcos Prado optou pelo uso de montagem, fragmentação da ação narrativa, mudança cromática, uso do álbum de fotografias pessoais e a alternância da fotografia colorida e em P&B sem sentido evidente. Fazendo uso do plano detalhe, câmera subjetiva, plano médio, close-up e super close. Além do modo poético e observativo, fica evidente o participativo (no qual Estamira parece ter um dialogo com o diretor, ainda que em nenhum momento a voz do diretor seja ouvida). Décio Rocha pensou o áudio do filme e priorizou pela sobreposição de ruídos e trilha musical e da voz em off.


Grito de silêncio

O silêncio, algumas vezes pode ser mais expressivo que um grito. Esse mutismo que há em mim grita. Grita. Contrariando a paralisia incutida no silêncio, grita. Não existe a necessidade de usar a palavra para explicar esse silêncio que grita e resiste dentro de mim e de ti.