sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Análise Fílmica: Ilha das Flores

Esse curta “que não é um filme de ficção”, como adverte ao telespectador logo no início, para que não haja enganos, diante das brincadeiras (leia-se ironia) durante a narrativa aparentemente óbvia, que inicialmente, desperta o sentimento de graça, diante de definições, como a dos seres humanos, que se distinguem dos demais animais por serem “bípedes mamíferos, com um telencéfalo altamente desenvolvido e um polegar opositor” ou de Dona Anete que “é um bípede, mamífero, católico, apostólico, romano. Possui o telencéfalo altamente desenvolvido e o polegar opositor. É, portanto, um ser humano.”
A obra ainda que com muitas cenas verossímeis, ao mesmo tempo segue a trajetória fictícia de um tomate: “plantado pelo senhor Suzuki,/ trocado por dinheiro com o supermercado,/ trocado pelo dinheiro que Dona Anete,/ trocou por perfumes extraídos das flores,/ recusado para o molho do porco,/ jogado no lixo,/ e recusados pelos porcos como alimento,/ está disponíveis para os seres humanos de Ilha das Flores”. Assim, passa do cômico ao trágico sem sutilezas.
Tem como locação “Belém Novo, município de Porto Alegre, estado do Rio Grande do Sul, no extremo sul do Brasil”. Na Ilha das Flores há “poucas flores e muito lixo”. Esse foi “um dos lugares escolhidos para que o lixo cheire mal e atraia doenças”, habitada por porcos e seres humanos (que se distinguem dos outros animais por terem um polegar opositor e um telencéfalo altamente desenvolvido).
Na Ilha das Flores os alimentos que os empregados do dono dos porcos julgam inadequados para a alimentação dos suínos, servem de nutrição para muitas famílias (que embora tenham um polegar opositor e um telecéfalo altamente desenvolvido “não possuem donos ou dinheiro”). Estapeando o rosto do telespectador com essa realidade, a zoomorfização do homem.
Provoca a reflexão de ideologias muito comuns atualmente, mas que tem encaminhado a maioria dos homens para esse estado de miséria, como: a competição natural, a livre concorrência, o sacrifício humano necessário e a teoria de mútua ajuda, de Kropotkin.
A narrativa, realiza jogos com os vocábulos, usa uma linguagem direta, onde as palavras são associadas linearmente, e as sucessões de fatos acontecem enumerados, intercalando definições e o aprofundamento da descrição com a presença visual satírica dos exemplos daquilo que é descrito, com metáforas.
A construção do enredo dá a impressão de continuação do mote, ou seja, uma palavra puxa a outra, por exemplo, “os japoneses se distinguem dos demais seres humanos pelo formato dos olhos, por seus cabelos pretos e por seus nomes característicos./ O japonês em questão chama-se Suzuki./ Os seres humanos são (...) com telencéfalo altamente desenvolvido e um polegar opositor./ O telencéfalo é (...)./ O polegar opositor permite (...)/ O telencéfalo altamente desenvolvido combinando a pinça nos dedos permite (...).”
O roteiro carregado da ideologia socialista, realista com influência positivista, mostra o ser humano condicionado as suas características biológicas, como fruto do meio em que vive, demonstra influência do evolucionismo de Charles Darwin, mais especificamente da competição natural.
O ceticismo do roteirista fica explícito, ao declarar de cara, a existência de um lugar chamado Ilha das Flores e a inexistência de Deus (com a apresentação da produtora). Produzido em 1989, aborda uma problemática atual: a realidade social brasileira (que passado duas décadas não sofreu grandes transformações), o darwinismo social, os valores na sociedade do consumo e o conceito de mais valia (lucro), definida por Karl Marx e Lennin.
A mais valia é explicada através de um produto, o tomate. Esse vegetal que em 1989 era produzido sessenta e um milhão de toneladas por ano e, por isso, deveria poder suprir as necessidades alimentícias de todos. Mas, devido ao neoliberalismo, a sociedade começa a sofrer as conseqüências dos processos de acumulo de riquezas, criando abismos sociais entre as classes, e com isso a miséria e a fome, que passam os habitantes da Ilha das Flores.
A liberdade, igualdade e fraternidade, ideais da Revolução Francesa são tratados, ao citar Cecília Meireles, para complementar a definição de liberdade, estado que distinguem os seres humanos dos animais, “liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”.
O início do filme marca o sentimento de patriotismo, ao tocar O Guarani de Carlos Gomes, música conhecida pelos brasileiros por ser a abertura do programa de rádio mais tradicional do país.
A influência estética do modernismo, mais especificamente do dadaísmo são evidenciadas em cenas fictícias, ao Fiapo Barth (diretor de arte) optar por recortes para expressar nas cenas a narrativa, por exemplo, o telencéfalo que “permite aos seres humanos armazenar informações, relacioná-las, processá-las e entende-las”. E o uso artes renascentista, com fotografias, recortes de revistas e imagens familiares a maioria dos seres sociais. Abusando do closer, plano médio e principalmente detalhe nas cenas.
Ilha das Flores tem duração de 12 minutos, dirigido e roteirizado por Jorge Furtado e narração de Paulo José, 1989. Ganhou o Festival de Gramado, 1989: melhor curta (júri oficial, júri popular e prêmio da crítica), melhor roteiro, melhor montagem. Festival Internacional de Berlin, 1990: Urso de Prata.

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